Filme “Mulheres em Auschwitz” revisita textos e objetos de mulheres que viveram o Holocausto

Texto de Marco Fialho, membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema: Tem obras que devido à temática são difíceis de assistir, porém necessárias ao extremo. Encaixaria “Mulheres em Auschwitz” nesse rol. Falar de Auschwitz é sempre algo que remete à aspereza, em especial por nos fazer lembrar de gerações de famílias que foram sacrificadas pela violência política do nazismo. “Mulheres em Auschwitz” resgata novamente essa história, tantas vezes já filmada, mas o faz pelo viés de escritoras que passaram pela experiência exasperante do campo de concentração mais cruel que o mundo conheceu. Mas vale mencionar que apesar do tema rugoso, a narrativa escolhida enveredou o filme para uma abordagem mais poética, o que torna tudo menos cru, e esse viés permite que o filme consiga navegar e passar por um mar tão turbulento e revolto.

O trabalho de direção de Patricia Niedermeier e Regina Miranda (lembrando que o roteiro é só dela) foge da abordagem chocante do documental, apesar de esbarrar nele tanto no uso de imagens de fotos, como de filmes de época. Sem contar que a própria narração de Patricia resgata e recria as palavras de diversas escritoras que viveram o inferno em Auschwitz, dispositivo também usual em documentários. O que mais me despertou nesse filme foi a atmosfera criada para que o espectador vivencie e mergulhe nas memórias dos relatos dessas mulheres com grande impacto audiovisual. Sente-se que há uma intenção deliberada na construção dramática dessa obra, o quanto cada cena foi pensada para despertar sensações e repulsa ao que é narrado em tela. Som e imagem aqui estão postos a serviço de uma dramaturgia eloquente, e ambas, são primorosas.

O trabalho fotográfico de Fabrício Mota mais uma vez se destaca. Em “Mulheres em Auschwitz” a tonalidade cinza e as cores esmaecidas marcam o registro fotográfico, assim como o dos figurinos, além do uso constante do preto que vez por outra inunda as imagens. Essa homogeneidade em tom pastel acinzentado no plano da imagem se contrapõe ao um expressivo vigor sonoro, comandado com muita sensibilidade por Bernardo Gebara. As cenas, no geral, são muito bem construídas nessa conexão entre imagem e som, que juntos, perfazem um conjunto dramático significativo, devido a um desenho muito bem costurado entre essas duas camadas no filme.

“Mulheres em Auschwitz” possui uma característica bem marcante: a presença de Patricia Niedermeier, uma das diretoras do filme, como única atriz do elenco. No todo, Patricia quase não fala em cena, já que a maioria das vezes, a voz de Patricia aparece em over. Independente de onde venha as vozes, o importante é dizer que a fala de Patricia se transforma na voz e corpo de todas as mulheres que foram escolhidas para participarem do filme. Como em todos os projetos que participa, aqui também ela empresta a sua presença soberana e sensível, cuja expressividade consegue cativar até o coração mais enrijecido.

Entretanto, apesar do peso temático sinistro, “Mulheres em Auschwitz” possui um valor inestimável em relação a ser mais uma obra a ratificar o absurdo do extermínio nazista, ou qualquer outro que venha existir. E uma obra também deve ser analisada pela sua condição de memória, e nesse viés, o filme é rico em criar diversas cenas marcantes, a maioria imersas em simbolismos, que mobilizam o emocional do espectador. Logo no início, temos a sequência da obra-instalação de caixas com fotos coladas de pessoas que passaram por Auschwitz, instalação que salienta a presença dos arames farpados como elemento de enclausuramento e dor, marca nefasta dos campos de concentração nazistas. Mais as diretoras, delicadamente, lembram da importância de se cortar esses arames, como forma de resistência ao horror nazista. Nessa sequência, a câmera se destaca por passear plácida e lentamente pelos objetos e por Patrícia, e assim registrar rostos de homens, mulheres e crianças mortos em Auschwitz, enquanto imagens do campo de concentração borram poeticamente o campo imagético quando são projetadas na parede e no corpo da personagem de Patrícia. Essa sequência poderia soar hiperbólica por conter muitos elementos sobrepostos, mas a leveza, a sutileza e a beleza aqui prevalecem. Inclusive a projeção no rosto de Patricia gera imagens texturizadas muito bonitas e carregadas de tristeza e desamparo.

Um dos pontos muito impressionantes do filme são os relatos, que narram a aflição e o medo dos que viveram o terror de Auschwitz, que passaram por momentos de desespero cotidiano pelo trabalho forçado, pela rotina sufocante e agoniante de quem não tem escolha, pois são jogados nos campos para serem vilipendiados enquanto esperam nervosamente a hora da morte. Muito interessante o quanto que o filme trabalha sonoramente ao ritmo do trem, o transporte responsável por levar milhares de judeus para os campos de extermínio. Inclusive, muitos entraram de bom grado nos trens nazistas acreditando que estavam indo para trabalhar de maneira digna.

Durante todo o filme, a personagem de Patricia vive numa espécie de solidão, ela está sempre sozinha na imagem, ela é a única pessoa em meio à paisagem, seja ela qual for. Isso traz um elemento simbólico à história, essa sensação de que você está perdido e desamparado no mundo. A cada nova cena, essa imagem é ratificada, assim como a palheta de cores mortas acentuando essa atmosfera hostil e violenta, além das sucessivas imagens sobrepostas de filmes reais que se agregam à imagem principal.

“Mulheres em Auschwitz” reafirma a todo instante texturas cruciais, seja nas ranhuras de paredes ásperas que realçam a dramaticidade das cenas, seja nos depoimentos que denunciam as humilhações sofridas por essas mulheres pelos soldados alemães. Ruidosos também são os sons de gritos grosseiros dos soldados e de tiros implacáveis determinando quem devia viver ou morrer. Essa camada sonora, apesar de não ser diegética, ela está em contínuo diálogo lógico com as imagens e essa é uma das camadas que “Mulheres em Auschwitz” nos impõe dramática e implacavelmente até o fim.

“Mulheres em Auschwitz” tem um peso inquestionável. As imagens e o som são sempre carregados e duros, tal como as paredes, rochas, pedras, montanhas, prédios em ruínas, o aço do trem e os dias nublados que teimam a contextualizar cada imagem do filme, a torná-lo lúgubre, como aliás não poderia deixar de ser, assim como as músicas tristes que perpassa muitas cenas. Como falar de um tema tão sofrido e não se abalar com ele? Como usufruir dessas memórias e não se cortar com elas? Como não ser atravessado por essas vidas ceifadas em seu pleno vigor? São perguntas que o filme nos deixa como reflexão e conscientização sobre o absurdo que representou a política de morte nazista.

“Mulheres em Auschwitz” é duro sim, mas Regina Miranda e Patricia Niedermeier se valem da sensibilidade e da poética, não só as contidas nas palavras, como também as que estão tomadas pelas imagens e pelos sons. Mas como não homenagear essas mulheres e trazer uma reflexão sombria (afinal a história precisa ser contada, lembrada e relembrada) a partir delas? Como não carregar o coração de emoção e empatia por essas mulheres que morreram (as que não morreram, foram dilaceradas física e mentalmente de alguma forma) e lutaram para que o mundo voltasse a ter esperança?

Esse é um filme que pode ser traduzido como um potente tributo poético, um exercício poderoso de memória e de força do pensamento histórico. A ideia de acender um fósforo para cada mulher de Auschwitz fecha a ideia de fazer com que essas vidas nos digam o quanto elas foram, são e serão sempre fundamentais para a humanidade, que jamais deixarão de ser uma promessa de luz enquanto esse filme for exibido. Além de carregarem uma ação afirmativa de que suas mortes servirão de exemplo, para que o mundo nunca mais caia na esparrela do discurso nazista ou fascista.