Sobre o perdão e o Holocausto




Por Carlos Reiss e Michel Ehrlich – O Holocausto é um tema que frequentemente ocupa espaço no debate público, nem sempre com argumentos fundamentados historicamente ou de maneira ética e pedagogicamente adequada. Mais recentemente, a partir de uma declaração do presidente da República, o tema da possibilidade do perdão aos crimes nazistas entrou em discussão. Além da necessidade do Museu do Holocausto de Curitiba de se posicionar, utilizamos estes momentos para enriquecer o debate com pressupostos sérios e numa perspectiva educativa e universalista.

Em 1969, quase 25 anos depois da liberação dos campos e do fim da Guerra, o famoso sobrevivente Simon Wiesenthal (conhecido como o “caçador de nazistas”) lançou um livro chamado “O Girassol: sobre as Possibilidades e os Limites do Perdão” (não publicado em português, numa tradução livre do original “The Sunflower: On the Possibilities and Limits of Forgiveness”). Por que Wiesenthal levantou esta discussão? Ele parte de uma história que aconteceu com o próprio, em 1943. Ainda confinado no campo de concentração nazista de Lemberg, Simon foi enviado com outros prisioneiros a um hospital militar para eliminar o lixo hospitalar. Lá, uma enfermeira o chamou para junto ao leito de um soldado alemão moribundo de nome Karl Seidl. O soldado lhe disse que estava buscando o perdão “de um judeu” por um crime que cometera. Durante várias horas, Seidl contou a Wiesenthal sua história, incluindo a entrada na Juventude Hitlerista e na SS. Ele então confessa ter participado do incêndio de um prédio com cerca de 300 judeus, destacando que aqueles que tentaram escapar pelas janelas foram abatidos por ele e por outros homens. Depois que Seidl terminou sua história, ele pediu a Wiesenthal que o perdoasse. Atônito, Wiesenthal saiu da sala sem dizer nada. No dia seguinte, a enfermeira lhe contou que o soldado morreu e que havia deixado a ele seus pertences, mas Wiesenthal se recusou a levá-los. Após a Guerra, conheceu a mãe de Seidl – e mentiu sobre as circunstâncias em que se conheceram. No livro, ele então levanta o dilema ético se deveria ou não ter perdoado o soldado Seidl.

Este foi o ponto de partida da obra. Podemos perdoar um criminoso arrependido, não importa quão hediondo seja seu crime? Podemos perdoar crimes cometidos contra outros? O que devemos às vítimas? No livro, Wiesenthal perguntou a vários intelectuais e pensadores o que eles teriam feito em seu lugar. Coletados em um volume, suas respostas se tornaram um valioso documento sobre o diálogo inter-religioso. O título veio da observação de Wiesenthal de um cemitério militar alemão, onde ele viu um girassol plantado em cada túmulo. Apesar de algumas respostas incertas, a maioria absoluta dos ensaios opinou que não haveria perdão (casos, por exemplo, de Primo Levi, da socióloga Nechama Tec, da historiadora americana Deborah Lipstadt, do rabino Abraham Heschel e do historiador Tzvetan Todorov). Pouquíssimos apontaram que perdoariam (casos, por exemplo, do Dalai Lama, do arcebispo anglicano e ativista político sul-africano Desmond Tutu e do padre católico Edward Flannery). Só para citar nomes conhecidos de várias edições (na primeira havia 10, na última mais de 50). Resumindo, o tema existe no campo da Ética e da Filosofia. O Holocausto não é imperdoável por definição – se fosse, Wiesenthal não teria levantado a discussão. E as respostas seriam unânimes.

A possibilidade ou não de perdoar precisa ser desmembrada em diversas outras perguntas, cada qual com suas complexidades.

1) Quem pode pedir o perdão?
2) Quais são os objetivos de se pedir perdão?
3) Quem tem o direito de perdoar?
4) Em nome de quem se pode perdoar?

Sobre pedir o perdão, quem poderia fazê-lo? Os perpetradores, que incluem nazistas e seus colaboradores, e os observadores omissos. Apenas eles. A outros (por exemplo, alemães nascidos após a Guerra) pode caber uma responsabilidade histórica que se reflete em políticas de memória e justiça, mas não culpa – e não havendo culpa, não haveria perdão a pedir. E sim, muitos já pediram perdão. Em 1998, o cardeal australiano Edward Cassidy falou sobre o que seria “mais que um pedido de desculpas, mas um ato de arrependimento”. Em 2000, o papa João Paulo II pediu perdão – seguido anos depois pelos seus sucessores. Em 2014, a Hungria pediu perdão pela primeira vez por sua participação no Holocausto. Já o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau pediu perdão, no ano passado, por seu país ter se recusado a acolher mais judeus. Nesses casos, tratam-se de pessoas que pediram perdão não necessariamente por seu envolvimento pessoal, mas em nome de grupos que eles representam (como chefes de Estado, líderes religiosos etc.). Mas, como sabemos – e é o caso da obra de Wiesenthal, houve pedidos individuais de perdão. Para que se perde perdão? Com quais objetivos? Para negar, se abdicar das responsabilidades ou para ganhar algum benefício em troca, o que seria a pior das hipóteses. Para cumprir um preceito tipicamente cristão: o perdão genuíno, puro, benevolente. Ou para dar mais um passo no processo de expiação de suas culpas, o que seria a melhor das hipóteses. Isto inclui tanto pagar pelos erros quanto limpar a consciência sobre o ato imoral que cometeu, algo tipicamente judaico.

E o direito de perdoar? A princípio à vítima. O sobrevivente. Muitos, em seus testemunhos gravados, falaram que sim, é possível perdoar. É o caso da sobrevivente Eva Mozes Kor, vítima de experimentos de Mengele e que ainda hoje, aos 85 anos, roda os Estados Unidos com uma palestra intitulada “From Auschwitz to Forgiveness” (em português, “De Auschwitz ao Perdão”). Outros muitos, que nunca perdoariam. Há diversos motivos para conceder (ou não) o perdão, a depender: se houve um pedido e por parte de quem; da intenção daquele que pediu o perdão, o que nem sempre saberemos; de qual público ouve diretamente o pedido; da necessidade de não generalizar o perdão, que é individual; de como lidamos intimamente com as ideias de justiça, de vingança, de rancor e de misericórdia; de como relacionamos um possível perdão com as tarefas de não esquecer e de evitar que genocídios e violações de direitos humanos voltem a ocorrer; de quão libertador o perdão pode ser para os traumas, próprios ou coletivos. De todo modo, o perdão é um direito da vítima, algo que não pode ser exigido ou tampouco negado.

Finalmente, em nome de quem se pode perdoar? O perdão não opera da mesma forma que a memória ou a justiça. A primeira pertence também mas não somente aos indivíduos; a justiça, ainda que um direito das vítimas, é aplicada pelo poder público. Já o perdão é algo que diz respeito somente à vítima, ou seja, somente a pessoa afetada pode perdoar e em nome dela mesma, não de outros. Ainda que esses três âmbitos tenham conexões, não são dependentes uns dos outros. Em suma, ninguém tem o direito de conceder um perdão em nome de outros. Na obra de Wiesenthal, inclusive, há o argumento de que ele até teria o direito de perdoar o nazista, mas não era admissível que o fizesse em nome dos judeus. No fundo, era o que Seidl queria ao chamar não alguém a quem tenha feito mal especificamente, mas um judeu genérico, que poderia ser Wiesenthal ou qualquer outro. Cabe a todos exigir justiça pelos crimes cometidos pelo regime nazista (lembrando outra obra de Simon Wiesenthal, “Justiça não é Vingança”, publicada no Brasil em 1990). Igualmente, a memória do Holocausto, ao contrário da lembrança, não pertence apenas às vítimas ou aos que participaram diretamente dos ocorridos. É uma construção – hoje universal, e faz parte de todos nós. O perdão, entretanto, permanece uma prerrogativa das vítimas, individual e intransferível.

Sobre a frase do presidente da República: a declaração é problemática, mas não exatamente pelo motivo que viralizou – que o Holocausto seria imperdoável por natureza. A discussão sobre o perdão existe, é legítima, mas não parece ter sido este o viés do discurso na ocasião: pelo contexto sócio-político, pelo público ouvinte e pelo debate público. Aparentemente, a declaração é leviana e não responde a um pedido específico de perdão, de modo que se levanta a pergunta do que exatamente estaria sendo perdoado. Em segundo lugar, é questionável se alguém que não foi vitimado pelo Holocausto teria o direito de aventar seu perdão. Finalmente, a questão principal envolve o fato de a declaração ter sido dada não em uma ocasião privada como indivíduo, mas em um evento oficial como chefe de Estado. Consequentemente, em nome dos cidadãos brasileiros, alguns dos quais vítimas do Holocausto. E, conforme já salientado, o perdão é uma decisão que diz respeito à vítima de forma individual. Desta forma, não cabe ao Museu do Holocausto de Curitiba (nem a qualquer um que não as vítimas) conceder ou não um perdão – ainda que compreendamos e vejamos com simpatia as inúmeras manifestações na imprensa e nas redes sociais de que não seria possível perdoar. A revolta de muitos, especialmente daqueles com vínculos familiares com as vítimas, é compreensível e a endossamos, não por uma imperdoabilidade total do Holocausto, mas porque o perdão não cabe aos que não foram vítimas. Menos ainda em nome de outros e muito menos com objetivos políticos. No fim das contas, embora a discussão exista sob ponto de vista filosófico, é importante destacar que ela é pedagogicamente periférica. O foco deve ser para que o ensino e a transmissão das lições éticas do Holocausto não sejam sobrepostas pela discussão filosófica do perdão. O legado é atual. Lembraremos, nunca esqueceremos. É esta a nossa missão.

* Carlos Reiss é o coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba.
* Michel Ehrlich é historiador e coordenador do departamento de História do Museu do
Holocausto de Curitiba.