Advogada Milena Gordon Baker lança o livro “Criminalização da Negação do Holocausto no Direito Penal Brasileiro”

A advogada Milena Gordon Baker acaba de lançar o livro “Criminalização da Negação do Holocausto no Direito Penal Brasileiro”. A obra propõe uma análise da negação do Holocausto a partir da perspectiva oferecida pela intolerância e pelos discursos de ódio, especificamente no âmbito do direito penal. O livro pode ser adquirido na editorathoth.com.br, e em versão kindle, na Amazon.

Doutora e Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), especialista em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca com curso de extensão em Harvard – Holocausto na História, Literatura e Filme e curso de extensão em Direito Penal na Universidade de Gottingen, Alemanha, a autora deu a seguinte entrevista à Conib.

O seu livro parte da tese Tipificação da negação do Holocausto como crime no direito penal brasileiro, certo?
Cheguei a comentar com você que mudei o título do livro para Criminalização da Negação do Holocausto no Direito Penal Brasileiro pois o termo “tipificação” é muito técnico e usei para a minha tese de doutorado em direito penal.

O trabalho visa responder se, no Brasil, deve haver a tipificação da negação do Holocausto como crime, inclusive como forma de efetivação das garantias constitucionais já previstas, no sentido de repudiar o racismo e combater o antissemitismo. Qual a conclusão?
Da leitura da Constituição federal brasileira, pode-se concluir pelos seus dispositivos que existe uma política de tolerância zero em relação ao racismo. Nota-se uma preocupação intensa no combate e erradicação do racismo. O exemplo maior deste combate está no fato da Constituição ter considerado o racismo como crime inafiançável e imprescritível, o que é uma exceção no direito penal brasileiro, pois a Constituição determina a inafiançabilidade e imprescritibilidade apenas quando o crime é gravíssimo.
O racismo é algo extremamente perigoso e perverso, pois estimula a discriminação e ataques físicos a determinado grupo ou minorias.Eu gosto muito da frase do professor Miguel Reale Junior quando fala que trata-se, antes de tudo, de uma forma de inferiorizar o outro, de uma estrutura mental que considera os outros diversos, não se lhes atribuindo a possibilidade de estar “entre nós”, de gozar dos mesmos direitos, o que constitui uma “expulsão continuada do outro.”
Essencial entender que, como dizia Norberto Bobbio, o maior filósofo de direitos humanos, o antissemitismo é um racismo específico contra os judeus e pode ser concebido como a forma de racismo mais conhecida pelos povos europeus.
Nessa mesma linha a Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1998, baixou uma resolução (623) que equipara o antissemitismo ao racismo.
Diante da complexidade do fenômeno do antissemitismo as organizações governamentais de direitos humanos da Europa e Estados Unidos adotaram em 2017 o que eles chamam de “workingdefinition” de antissemitismo, que na verdade é um guia prático para identificação de antissemitismo e que contém uma lista completa de previsão de condutas que poderiam se encaixar como antissemitismo.
A negação do Holocausto é uma dessas condutas. A identificação do antissemitismo é essencial para que não exista arbitrariedade, para que não se rotule algo como antissemitismo quando não pode ser entendido como tal e, também, para que possamos combater o fenômeno e erradicá-lo. Todas as maneiras de hostilidades às minorias como xenofobia, homofobia, islamofobia e outras devem ser identificadas assim podemos entendê-las melhor. A “nomeação” e identificação de comportamentos intolerantes/racistas funcionam como ferramenta no auxílio à contenção e prevenção dessas condutas.
Diante do aumento do antissemitismo e o ressurgimento de movimentos neo-nazistas, muitos países democráticos da Europa adotaram leis criminalizadoras da negação do Holocausto como França, Alemanha e muitos outros. No ano de 2008, a Europa, por intermédio do Conselho da Europa, adotou a Decisão Quadro (instrumento normativo de direito europeu) para orientar os países na criação de leis para uniformização do crime de negação do Holocausto.
Portanto, respondendo a sua pergunta, a conclusão é que a negação do Holocausto é uma forma específica de racismo chamada antisemitismo e deve ser criminalizada em respeito aos valores pregados pela nossa Constituição, principalmente o da Igualdade. A igualdade é o vetor máximo da Constituição e irradia para todo o sistema normativo nacional. Aqui é difícil desenvolver todo o raciocínio como eu gostaria, por questão de tempo, mas no meu livro eu estudo com profundidade o antissemitismo, a negação do Holocausto, o Holocausto em si e analiso esses termos tão complexos, desafiadores e caros à humanidade.

Por que escolheu tratar o tema do Holocausto? O que chamou especialmente sua atenção?
Falar do Holocausto é falar da história da humanidade, porque ele não foi um fenômeno natural como um tsunami ou terremoto, mas sim, foi feito pelo homem. Dessa forma o Holocausto como fenômeno histórico desperta interesse em todas as áreas de conhecimento como, por exemplo: sociologia, psicologia e antropologia. O estudo do Holocausto nos proporciona uma maneira de compreensão do que o ser humano é capaz e pode fazer com seu semelhante.
O Holocausto como arquétipo de genocídio foi fundamental para criação de inúmeras teorias de comportamento humano como a teoria do professor norte americano Philip Zimbardo que explica que o ser humano não nasce um ser cruel, ele se torna cruel diante das circunstâncias. E também dos estudos de Stanley Milgram, que apontam a facilidade como o ser humano pode obedecer cegamente às autoridades, mesmo causando dano a outro ser humano sem ter a mínima consciência moral.
Analisando o Holocausto podemos entender as figuras centrais de um genocídio: o “bystander” (espectador), o “upstander” (não sei a tradução em inglês – talvez integrante da resistência que é contra o sistema -herói), o perpetrador e a vítima. Especialistas afirmam que essas observações são importantes para conscientização e prevenção de futuros genocídios.
Na área de direitos humanos o Holocausto foi um divisor de águas, foi a mola propulsora para sua criação. Podemos já visualizar a menção do Holocausto no preâmbulo do documento que traçou os direitos humanos básicos – a Declaração Universal de 1948 – “Desprezo e desrespeito que culminaram em atos bárbaros”.
O conceito de dignidade humana, que tanto se fala hoje em dia, também foi criado a partir desse fenômeno trágico e cruel da história, quando os campos de concentração foram liberados, anos mais tarde, nas memórias descritivas dos sobreviventes desse inferno.

Um relato que me chocou e que representa muito bem a falta de dignidade humana foi do escritor e sobrevivente de Auschwitz, Primo Levi, quando ele falou que encontrou uma colher no campo e a guardou como se fosse uma joia, pois ele comia com as mãos. Ele conta em seu relato que juntava as mãos como se fosse uma colher para comer, antes da descoberta da colher. Você imagina? uma simples colher…algo que não damos o menor valor no nosso cotidiano.
Em termos de responsabilidade e prevenção a genocídios, o Holocausto está vinculado ao famoso “Never Again” e traz um paradigma social para que a representação do passado faça com que as pessoas, no presente e no futuro, entendam que existe a possibilidade do mal acontecer.
Cito um clichê apesar dos clichês serem criticados por alguns, eles funcionam, pois trazem uma mensagem com rapidez e eficácia. O clichê é do espanhol George Santayana: “Quem não se lembra do passado está condenado a repeti-lo”.
Por fim, existe na atualidade um abuso da utilização do Holocausto, o que considero uma ofensa à dignidade humana e aos direitos humanos. A superutilização e equiparação ao Holocausto usada como retórica para agredir e ofender políticos rivais é perversa. Quando tudo vira Auschwitz, até mesmo um bullying de uma criança na escola, tudo que aprendemos com o Holocausto perde a sua essência. Quando o Holocausto é negado ou banalizado desconstrói-se tudo que construímos com seu legado especialmente para futuras gerações, como empatia a minorias e conscientização de racismo como algo intolerável.
Na minha opinião a única comparação legítima seria com outros genocídios como apontou Debora Lipstadt, uma das maiores especialistas americanas em antissemitismo. Lipstadt cita como exemplo o caso da Bósnia, no qual muitos jornalistas, intelectuais e ativistas, quando fizeram comparações com as atrocidades do nazismo, perceberam que havia um interesse maior na mobilização e sensibilização da comunidade em geral.

Como situa, em sua análise, a negação do Holocausto, a partir da perspectiva oferecida pela intolerância e pelos discursos de ódio, especificamente no âmbito do direito penal?
Primeiramente é importante entender o que significa o tal do “discurso de ódio” tão falado na atualidade e que muita gente faz confusão por causa da palavra ódio. Por exemplo, esse não é aquele ódio que você sente quando briga com seu vizinho por causa do barulho insuportável que ele está fazendo ou quando você sente raiva e discute com alguém.
O discurso de ódio é um termo construído na linha do direito penal discriminatório / direitos humanos e pode ser entendido como aquele que expressa e encoraja o ódio contra grupos de indivíduos pelo seu traço distintivo como raça, gênero, etnia e religião. De uma forma mais
simples, são ataques verbais contra determinados grupos de minorias, portanto, a sua própria definição está intimamente ligada à intolerância. Na verdade, ele é um instrumento da intolerância.
Da mesma maneira que foi exposto anteriormente sobre a “workingdefinition” do antissemitismo, existe também um manual que define o discurso de ódio.
O discurso de ódio é um fenômeno que desafia uma vez que está intimamente ligado ao conflito entre dois direitos fundamentais: a liberdade de expressão e o direito à não discriminação.
Existe controvérsia na sua proibição e regulamentação. Sou adepta dos ensinamentos de Jeremy Waldron, professor da New York University e estudioso do discurso de ódio. Ele alerta para os perigos e efeitos desse tipo de discurso. Na sua visão, esse discurso causa um dano não apenas aos indivíduos que sofrem com suas consequências – intimidação e incentivo a possíveis ataques físicos, como também à sociedade como um todo, o que ele denomina “tecido social”. Em seu livro “The Harm in Hate Speech”, ele traz um exemplo muito ilustrativo do discurso de ódio – pai e filho pequeno de origem muçulmana andando de mãos dadas pelas ruas, o pai lê vários cartazes que dizem “muçulmanos são terroristas”.

A negação do Holocausto enquadra-se no discurso de ódio e possui dupla agenda política:

Primeiro estimula o antissemitismo pois dá a ideia de que os judeus manipularam a história e coloca os judeus não como vítimas, mas como vitimizadores. E num segundo momento visa o restabelecimento do nazismo uma vez que a sua mensagem é a de que o nazismo não foi tão ruim assim, minimizando os atos perpetrados pelo regime nazista. A Europa se preocupa na manutenção de uma sociedade democrática, não admitindo o abuso da liberdade de expressão por parte dos intolerantes.
O direito penal tem a função de intervir sempre para a proteção da coletividade visando bens essenciais ao indivíduo e à sociedade como um todo. No caso na negação do Holocausto esses bens que o direito penal chamou de bens jurídicos seriam a igualdade, a honra e a paz social.
Combater o antissemitismo e a negação do Holocausto não é tarefa fácil, talvez possamos chamar de tarefa “hercúlea” pois estamos lidando com a liberdade de expressão e o aumento incessante de mídia social. Podemos dizer que existe uma luz no fim do túnel já que estamos vendo atualmente movimentos de luta e consciência em relação ao racismo em geral e contra o discurso de ódio.
Recentemente várias grandes empresas americanas lançaram nos Estados Unidos a campanha #stophateforprofit (pare de dar lucro ao ódio) com o intuito de boicotarem o Facebook cortando verbas de publicidade. A campanha foi extremamente bem-sucedida e várias empresas como Coca Cola, Starbucks, Microsoft, Hershey’s, Honda e muitas outras aderiram. Eu me animei muito quando li a seguinte nota do CEO da Coca Cola, James Quincey: “não existe lugar para o racismo no mundo, então não existe lugar para o racismo na mídia social”. Esse tipo de declaração pode ser visto com otimismo na luta contra o discurso de ódio.
Unindo-se ao combate do discurso de ódio, também existe um apelo dos próprios sobreviventes do Holocausto na plataforma digital da Claims Conference pedindo a retirada das publicações relativas à negação do Holocausto.
E para fechar, me inspiro na frase de Pirkei Avot 2:21: “Não estás incumbido de completar o trabalho, porém não estás livre para desistir dele”.

O que deve ser feito para melhorar a legislação no tocante ao discurso de ódio, de uma forma mais ampla, e à negação do Holocausto?
Apesar de existir no artigo 20 da lei de crimes resultantes do preconceito de raça e cor (Lei 7716/1989), a previsão de condutas que visam a divulgação do nazismo, como por exemplo a cruz suástica ou gamada, inexiste a conduta específica da negação ou banalização do Holocausto.
Nesse sentido existe uma lacuna na previsão do ordenamento nacional em relação à negação do Holocausto e sua criminalização apenas poderia ser introduzida por lei penal como regem os princípios basilares do estado democrático de direito, que impõe o princípio de legalidade para segurança jurídica na qual a conduta da negação seria determinada e certa.
Em razão da sistemática da ciência penal, essa conduta deveria ser inserida no artigo 20 como uma das previsões (discurso de ódio) com finalidade de divulgação nazista.
Há no Brasil um projeto do deputado federal Itagiba (Projeto de Lei n .087) para criminalização que está parado desde 2007.No livro explico com mais profundidade as várias formas de criminalização de genocídios que os países europeus adotaram bem como os projetos de lei na América Latina.