A curiosa história da comunidade judaica da China

Ninguém sabe ao certo quando os chineses tiveram o primeiro contato com os judeus. Alguns historiadores afirmam que, a partir do século VIII, os mercadores judeus que viajavam pelo mundo chegaram à China, nação mercantilista por excelência, e documentos datados de 717 atestam o estabelecimento no império chinês, de comerciantes judeus vindos do Oriente Médio. Em entrevista à CONIB, o professor Paulo Roberto Feldmann, da FEA-USP, conta como descobriu essa comunidade em Shangai e como os judeus foram acolhidos pelos chineses, a ponto de a China ter recusado, durante a Segunda Guerra, uma ordem para mandar de volta para a Alemanha nazista os que haviam buscado refúgio no país.

Como descobriu essa comunidade judaica em Shangai?
É muito interessante e pouquíssima gente sabe que os primeiros judeus chegaram à China há cerca de 1.200 anos. Estima-se que em torno do ano 800 eles já eram uma comunidade muito ativa na cidade de Kaifeng que era a capital na época e o imperador os respeitava muito por conta da inteligência e por isso muitos judeus faziam parte da corte. Quando Marco Polo visitou a China no século XIII constatou que em Pequim os comerciantes mais atuantes eram judeus e mencionou ter conhecido vários rabinos. Gengis Kahn foi um mongol que invadiu e tomou a China mais ou menos no século XVI. Ao dominar a China e se tornar imperador tomou algumas medidas entre elas proibiu os judeus de comerem comida kasher. O que significa que naquela época já havia muitos judeus no país. Quando a rainha Isabel de Castela expulsou os judeus da Espanha alguns foram para a China e, por isso, nessa época (século XV) havia muitos judeus sefaraditas na China. No final do século XIX e início do século XX houve uma grande leva de judeus russos que fugiam dos pogroms e foram para a China pela proximidade e pela boa acolhida. Desta vez ficaram na cidade de Harbin que ainda conta com muitos judeus, embora não existam dados oficiais sobre o número dos que integram essa comunidade. Calcula-se que 20 mil judeus russos emigraram para o país, mas hoje seu número está entre 5 mil e 10 mil. Sabe-se com certeza que, por volta de 1925, 20 mil judeus moravam em Shanghai, inclusive os pais do ex-primeiro-ministro de Israel Ehud Olmert que nasceram lá e depois foram para Israel.

Fale um pouco sobre a história dessa comunidade.
Shanghai no início do século XX era uma das cidades mais importantes do mundo e também lindíssima. O avanço de Shanghai se deve à época do domínio britânico o que transformou a cidade no grande centro intelectual da Asia. Judeus do mundo inteiro iam para lá ou a turismo ou para estudar. Predominavam judeus que viviam nas colônias britânicas e saíram da Índia e do Iraque para viver em Shanghai. Houve uma grande emigração de judeus europeus askhenazi para Shanghai. Nessa época havia um rabino-chefe na cidade chamado Meir Askhenazi. Por volta de 1930 os japoneses invadiram a cidade de Harbin e boa parte dos judeus mudou-se para Shanghai. Estima-se que antes do Holocausto já haviam de 15 a 20 mil judeus em Shanghai. Com a 2ª Guerra todos os países fecharam as portas para os judeus que conseguiam fugir da Europa, exceto a China. Isso fez com que cerca de 20 a 25 mil judeus que fugiam da Europa conseguiram chegar à China e a preferência foi por Shanghai.

Saberia dizer qual o número de judeus que vivem lá e como vivem, se observam datas e a tradição religiosa judaica, como o shabat, e se consomem alimentos kasher?
Quando Mao Tse Tung tomou o poder em 1949 a China tornou-se comunista e todas as religiões foram banidas. Durante a revolução cultural nos anos 70 e 80 houve inclusive perseguição a todos que praticassem alguma forma de religião. Com isso não conseguimos saber quantos judeus ainda há na China. Eu sei que em Shanghai ainda há uma diminuta comunidade por que estive lá e visitei as 2 sinagogas além do Museu Judaico. Inclusive há um bairro judeu onde ficava o gueto imposto pelos japoneses em 1942. Aliás, esta é a parte mais bonita da história: Hitler determinou aos japoneses, que haviam invadido a cidade de Harbin, que mandassem os judeus de volta para os campos de concentração, mas a população chinesa não permitiu. Houve uma negociação e todos os judeus foram morar num bairro em Shanghai. Sei que há rezas nas sinagogas, mas não sei se há rabinos. Ocorre que depois de 1990 com Deng Xiao Ping houve uma flexibilização da atividade religiosa. Mas os únicos que realmente praticam sua religião abertamente são os muçulmanos. Há cerca de 100 milhões deles na China.

Como os chineses veem os judeus? São receptivos?
Os chineses não têm religião, mas seguem fielmente uma filosofia, que é o Confucionismo. Na época que havia aula presencial e eles vinham ao Brasil estudar aqui conosco eu sempre perguntava o que eles achavam do Brasil e a maioria dizia que ficava impressionado com a quantidade de templos e igrejas. Para eles religião é algo exótico. Quando perguntei a eles sobre os judeus que viviam na China eles sempre sabiam inclusive dos detalhes. Acho que se deve ao fato de eles serem obcecados pela história do país. Sabem tudo nos mínimos detalhes. Estive três vezes na China e lá converso muito com professores. Todos sabem muito bem o que é o judaísmo e respeitam muito a religião judaica e povo judeu, mas eles são ateus. Sabem também que os judeus tiveram um papel importante na história da China. Atualmente, a China tem forte relação comercial e tecnológica com Israel. Creio que a China dificilmente teria qualquer postura diplomática contra Israel, apesar de ser um país comunista. Ao contrário da Rússia na época do comunismo.

O professor Paulo Roberto Feldmann concedeu entrevista recente à principal emissora de TV chinesa, alcançando um milhão de espectadores, momento em que falou sobre a importância das relações Brasil-China. Assista no link: acesse.

Paulo Feldmann é engenheiro e doutor em Administração. Atualmente é Professor da FEA-USP. Foi diretor de inovação da Microsoft tendo sido também diretor dos grupos Sharp, Philips, Banco Safra, Banespa e Nossa Caixa. Publicou o livro “Management in Latin America” nos Estados Unidos em 2015 pela Springer. O livro foi atualizado e está sendo traduzido para o mandarim para ser lançado na China no começo de 2022. Atualmente é professor visitante de duas universidades húngaras: Pécs e MIscolk. É membro da Academia de Ciências da Hungria e Pesquisador visitante da Universidade Fudan na China.

Foto: Arquivo pessoal do professor Paulo Roberto Feldmann
Fonte: Conib